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Lei Áurea: liberdade relativa e marginalização de negros e negras

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O ato da Princesa Isabel em 13 de maio de 1888 está inserido na História, e de lá ninguém o tira. Hoje, contudo, a História não é mais contada como foi um dia. O sentido heroico da efeméride ruiu. Não é preciso estudar sociologia ou ater-se sobre registros historiográficos para saber que a Lei Áurea, na prática, nada teve de libertadora pois, ao mesmo tempo que aboliu à escravidão formal, lançou negros e negras à marginalidade, às tormentas de um racismo hoje chamado de estrutural.

“A Lei Áurea não foi um ato de bondade. Havia uma forte pressão internacional, especialmente da Grã-Bretanha, pelo fim do tráfico negreiro, o que beneficiaria o comércio bilateral. O Brasil era um dos últimos países do mundo que ainda praticavam o tráfico de escravos e escravas”, afirma advogada Eliane Aparecida Dias, militante contra o racismo e integrante do Conselho Secional da OAB SP.

Outros fatores também tornavam a escravidão insustentável no Brasil. Além da atuação política dos abolicionistas, a resistência de negros e negras escravizados alcançava um patamar dramático – eram comuns as fugas, os incêndios nas fazendas e os suicídios. Uma vez livres por lei, nada lhes foi concedido para que pudessem sobreviver dignamente. Nada lhes foi ofertado para que pudessem ao menos sonhar com uma realidade menos desumana.

“Não houve reparação nem qualquer ação para inserção das pessoas negras, ex-escravas, na sociedade”, adverte Dias.

De acordo com Marcelo do Carmo Barbosa, também advogado e membro do Conselho Secional da OAB SP, costumes e culturas dos escravos e escravas libertos, como a capoeira e as religiões de origem africana, foram criminalizados.   Foi assim que surgiu a dificuldade de sobrevivência que vemos até hoje nas periferias das cidades brasileiras”, observa Barbosa.

Ao longo do Século XX, negros e negras seguiram subjugados, em regra à margem da sociedade. Sua identificação com a indolência e o crime criou raízes aparentemente intransponíveis. Em pleno Século XXI, quando algumas iniciativas reparadoras são lançadas, como as Leis de Cotas e a Lei de Promoção da Igualdade Racial, boa parte da população torce o nariz.

“Existem leis, mas elas não bastam. É muito difícil mudar a mentalidade escravocrata. A criança negra que frequenta uma escola ou um clube onde a maioria é branca, por exemplo, é tratada como subalterna”, indigna-se Barbosa.

“Sinto todos os dias a presença da mentalidade escravocrata. Temos de lutar diariamente contra o racismo estrutural”, constata Eliane Dias.

O racismo estrutural de que fala a advogada é provado por números. Segundo o IBGE, em estudo de 2018, o rendimento médio domiciliar de pretos e pardos era de 934 reais. Entre brancos era de 1.846 reais. Ainda em 2018, 15,4% das pessoas brancas brasileiras viviam com 5,50 dólares por dia, valor adotado pelo Banco Mundial como indicador da linha de pobreza. Entre as pessoas negras, 32,9% viviam com esse volume de recursos. Já 8,8% da população negra brasileira vivia, em 2018, com menos de 1,90 dólar por dia, situação que caracteriza a pobreza extrema. Só 3,6% das pessoas brancas encontravam-se nessa situação.

Também é negra a maior parte das vítimas de homicídio no país. Conforme o Atlas da Violência 2020, produzido pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, em 2018 nada menos que 75% das pessoas assassinadas no Brasil eram pretas ou pardas. O mesmo estudo revela que os assassinatos de mulheres negras cresceram 29,9% em 10 anos, enquanto aumentaram 4,5% os assassinatos de mulheres brancas.

“Em hipótese nenhuma podemos dizer que a mulher negra está em condição de igualdade com a mulher branca na sociedade brasileira”, alerta Eliane Dias.

Se a sociedade não se escandaliza com dados como os elencados acima, fica fácil compreender porque o mercado de trabalho trata brancos e negros de modo tão desigual. Em 2018, negros e negras compunham 54,9% da força de trabalho no Brasil, segundo o IBGE. Paralelamente, eram 64% da população desempregada e 66,1% das pessoas que trabalhavam menos horas do que gostariam.

“Fico chocada ao ver a área de Recursos Humanos de uma empresa dispensar profissionais qualificados por causa da cor da pele. Às vezes, nem analisam o currículo de candidatas e candidatos negros”, denuncia Dias.

São raras as empresas que, como os Correios, onde Marcelo Barbosa trabalha, atuam de maneira socialmente aberta, mantendo negros e negras em posições de destaque.

Barbosa recorda que, desde a infância, teve de “brigar muito” para que, hoje, tivesse uma história da qual se orgulhar. “Ainda sofro preconceito, a exemplo do que sofria na escola, mas reajo de forma diferente. Minha formação e minha educação me fizeram entender que ninguém deve se sentir menor por causa da pele”, desabafa. E concita: “A história de cada negro e de cada negra tem que ser respeitada, pois são histórias de preconceito e subjugo”.

Empresária do show business, além de advogada, Eliane Dias acredita que os ídolos negros brasileiros – com destaque para nomes da música e do esporte – poderiam ser, em geral, mais engajados na luta pela igualdade. De todo modo, acha que cada negro e negra em posição de destaque é relevante à causa: “A representatividade importa. Toda pessoa negra que ocupa um espaço é muito importante para nós”.

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