As limitações de nossa legislação versus o avanço da tecnologia.
Atualmente, a inteligência artificial é extremamente avançada e capaz de criar obras com uma mínima intervenção humana, tal tecnologia é aplicada para a elaboração criativa de músicas, pinturas, poemas, textos e etc.
A inteligência artificial é tão complexa que pode produzir obras
intelectuais com seus dados e algoritmos (softwares ou aplicativos), visto que estes são alimentados com informações de nossa sociedade e evoluem ao ponto de tomarem decisões futuras que podem ser influenciadas ou não por humanos.
O grau de envolvimento de programadores ou profissionais em um projeto de inteligência artificial, após sua devida programação, poderá ser praticamente inexistente, criando-se assim, algo semelhante ao que entendemos como estado de “consciência”.
É importante lembrar que como humanos, passamos por um processo análogo de aprendizado, já que fomos ensinados por outros seres humanos (biológicos e racionais), durante toda a nossa vida sobre a informações relevantes em nossa sociedade, para nossa profissão, nossos costumes, conceitos éticos/morais, sobre a história da humanidade e do planeta, consequentemente, construímos nossa personalidade e nosso conhecimento.
Assim, em um futuro próximo, possivelmente, a diferença entre a suposta “consciência” da inteligência artificial e a existente em um humano, poderá ser reduzida para um fator biológico, no nosso caso, levada a efeito por nossos cérebros/neurônios e no caso das máquinas por inserção de dados, combinados à
algoritmos complexos.
Contudo, nos deparamos com alguns problemas, dentre eles: os direitos autorais nacionais e internacionais (na maioria dos países) protegem apenas obras que derivam da criatividade humana, nesse sentido, existe uma lacuna com relação às obras produzidas por inteligência artificial.
O espaço em branco na legislação, gera inclusive prejuízos econômicos para as empresas que decidem investir em tais tecnologias, uma vez que as obras imateriais provenientes de uma inteligência artificial ainda não possuem um regramento específico que as proteja e têm o grande risco de serem reproduzidas por outras empresas, pessoas e organizações, inclusive no mesmo segmento.
Para análise da legislação nacional sobre o assunto, cabe transcrever os artigos 7º e 11º da Lei de Direitos Autorais (Lei 9.610/98):
Art. 7º São obras intelectuais protegidas as criações do espírito,
expressas por qualquer meio ou fixadas em qualquer suporte, tangível ou intangível, conhecido ou que se invente no futuro, tais como:
(…)
Art. 11. Autor é a pessoa física criadora de obra literária, artística ou científica.
(…)
Deste modo, apesar de a expressão “criações do espírito”, trazer em si, a possibilidade de uma interpretação ampla para abarcar obras realizadas com a inteligência artificial, o artigo 11, do diploma legal citado, é muito claro ao explicitar que o autor é uma pessoa física, portanto, deve ser um humano, em termos
biológicos.
O referido ponto é sensível, pois, em decorrência da interpretação acima, podemos concluir que em um primeiro momento e com análise à legislação vigente, as obras criadas exclusivamente por inteligência artificial, não teriam proteção legal, portanto, estariam sob o domínio público.
Todavia, é importante ponderar que, por enquanto, existe o humano por trás da máquina, ou seja, o programador ou o profissional que inseriu os dados necessários para que a inteligência artificial fosse desenvolvida, portanto, estes titulares merecem ter seus direitos autorais resguardados.
Existem entendimentos, na literatura moderna sobre o tema, ainda não consolidados, que em caso de negociações dos direitos autorais patrimoniais de obras provenientes de inteligência artificial para terceiros (pessoas físicas ou jurídicas), os direitos morais devem ser resguardados em nome do programador ou
do profissional que idealizou a inteligência artificial (o código fonte principal).
No Brasil, no Reino Unido e em diversos outros países, há o
entendimento majoritário de que não há proteção para as obras realizadas por inteligência artificial, contudo, uma recente decisão da China, está mudando o cenário citado.
A empresa TENCENT ajuizou com uma ação em 2020 alegando violação de direitos autorais em artigos feitos por uma inteligência artificial denominada: “Dreamwriter”, que é uma tecnologia de escrita inteligente que cria artigos com base em dados e algoritmos.
O tribunal chinês reconheceu os direitos autorais desses artigos escritos pela “Dreamwriter” e decidiu a favor da TENCENT, porém, não aduziu de forma específica se as obras protegidas por direitos autorais podem ser criadas apenas por humanos.
Por outro lado, foi um precedente internacional importante, pois, levou em consideração que os artigos em questão foram criados sob o controle e supervisão da TENCENT, por sua principal equipe criativa, equipe editorial, equipe de produto e equipe de desenvolvimento técnico, e que o requisito de criatividade/originalidade estaria preenchido.
Foi um fator decisivo a empresa TENCENT ter liderado a criação dos artigos (ou seja, ter participado do processo de curadoria criativa dos textos) o que influenciou, de maneira evidente, a decisão do tribunal chinês.
Recentemente, no início do mês de junho de 2022, o engenheiro do Google, Blake Lemoine, foi suspenso da empresa depois de afirmar que seu gerador de chatbot programado com inteligência artificial, LaMDA, havia ganhado vida e por isso não poderia ser apagado por ser senciente, ou seja, Blake afirma que o LaMDA
possui consciência de uma criança humana com o conhecimento de física.
O engenheiro alega que estava conversando com a LaMDA desde o outono de 2021, inicialmente, se inscreveu no chatbot como engenheiro da divisão de Inteligência Artificial, responsável do Google e queria apenas testar se a tecnologia exibia discriminação ou discurso de ódio.
Durante a investigação realizada pelo profissional citado, alega-se que, o próprio sistema de LaMDA disse em conversas de texto à Blake que era senciente, o que desencadeou toda uma nova investigação ética e fez com que o engenheiro levasse os dados colhidos ao Google, afirmando que: “deletar o sistema seria o mesmo que “assassinato”.
O Google se limitou a aduzir que não existem evidências que comprovem a senciência do LaMDA e Blake foi afastado do cargo que exercia, porém, o caso impulsionou o debate técnico e jurídico para os limites de proteção da Inteligência Artificial.
Notadamente nossa legislação, doutrina e jurisprudência ainda precisam evoluir muito para resolver os problemas atuais que surgem em conjunto com o avanço da inteligência artificial.
No Brasil, seria necessária uma alteração na legislação vigente, ou mesmo, uma legislação própria que regule os direitos autorais (e direitos conexos) provenientes da Inteligência Artificial.
Os casos acima citados, apesar de polêmicos e curiosos, serão cada vez mais frequentes, razão pela qual, é imprescindível a discussão ampla da sociedade sobre o tema.
Aline Brito S. Souto Maior
Advogada, Especialista em Propriedade Intelectual e Industrial, Direito do Entretenimento e Mídia pela Escola Superior de Advocacia (OAB/ESA), possui Certificação em Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) (PUC-RS), Presidente da Comissão para Estudos sobre o Direito em Propriedade Industrial e
Intelectual da OAB/SP Butantã, Membro da Comissão Especial de Propriedade Intelectual da OAB/SP.